Quando se acostuma

Shena olhou para o namorado, ele a abraçou afetuosamente e lhe deu um beijo suave na testa. Depois saíram de mãos dadas da clínica. Sim, ele estava aliviado! Foi o que ela notou ao contemplar o semblante do homem, enquanto ele dava partida no carro. Não havia mais a gravidez. Ela passou a mão lentamente sobre a barriga, sentiu uma angústia, um nó na garganta, mas respirou fundo e deixou-se guiar pelas ruas iluminadas naquela madrugada fria de final de outono.

Esse era um segredo que havia de ficar entre os dois. Seu pais nunca a perdoariam por essa decisão. Conservadores e religiosos, eram radicalmente contra o aborto e ponto final.

Outros dias vieram, mas o namoro já perdera o encanto. Não havia mais a paixão de antes. Ela decidiu acabar com tudo. Ele não aceitou de imediato, viveram momentos de tensão até que realmente ambos reconheceram que não havia mais motivo para continuar.

Ela se apaixona novamente. Sentindo-se mais protegida e confiante, acredita que está na hora de revelar ao novo amor a experiência vivida há algum tempo. Shena revela que decidiu interromper a gravidez porque o namorado na ocasião não queria ser pai. E porque ela também não tinha coragem de assumir a gravidez sozinha e ainda desapontar com os pais. Ele a escuta com ternura e cumplicidade. – ‘Que bom ter alguém em quem confiar’, Shena suspira. Ela está feliz.   

Entretanto, pouco mais de um ano, ela começa a descobrir que o homem cheio de ternura também tem defeitos e que aos poucos vão lhe causando um certo desconforto. Preocupado em ostentar uma imagem que não condiz com a realidade, ele mergulha em dívidas. E o uso de drogas e álcool, que até então era algo quase imperceptível, passa a ocorrer com demasiada frequência e sem muita discrição. 

Shena continua apaixonada. Ele, apesar de tudo é amoroso. Porém é hora de parar e repensar tudo. Decide partir para o diálogo. Propõe um tratamento, mas ele rejeita. Shena não vê outra alternativa, a não ser o fim do relacionamento. Ele não aceita e reage de forma agressiva. ‘Se você me abandonar, conto tudo para sua família e me mato!”

 Ela não vê saída. Fica com ele. Conversa com os pais sobre a situação financeira e o vício do companheiro. Os pais não se surpreendem, já haviam notado a diferença nos últimos anos. Shena explica que não tem intenção de abandoná-lo e vai lutar para que ele melhore, mas precisa da ajuda dos pais. E é atendida.

Os anos passam, ele pouco melhora. E a vida segue nesse padrão de infelicidade. Até que ela engravida.

A notícia da gravidez deixa todos contentes. E, junto, a esperança de que uma criança possa  trazer um pouco de felicidade para a vida do casal. Ele comemora, promete melhorar.

E durante a gravidez, é um homem dedicado e amoroso. Nasce um belo garoto. Passada a emoção dos primeiros meses com a chegada do bebê, as dívidas e o vício voltam a assombrar a vida de Shena. Ela tenta o diálogo novamente. Ele se interna numa clínica de reabilitação. Volta para casa, sentindo-se curado, mas a mania de ostentação continua e a contabilidade não fecha. As dívidas só aumentam.   

Shena continua incomodada. Mas perante os pais e os amigos, as aparências são mantidas.

Era melhor deixar tudo como estava. Não podia se separar dele, pois corria o risco daquele segredo ser revelado aos pais.

O que fazer? Os pais eram bons demais para sofrerem essa decepção. Se bem que talvez, isso fosse um choque só no primeiro momento e depois a perdoariam. Não, não tinha coragem para arriscar. E ele? Se abandonado, poderia cometer o suicídio… Ela levaria para sempre essa culpa, ainda mais agora com o filho pequeno. O garoto iria culpá-la… Ele era um pai carinhoso. Até porque o lado das dívidas, da mania de grandeza, da chantagem era algo que não dizia respeito à criança. A cabeça girava…

O amor há algum tempo havia acabado, mas estava acostumada com ele.  – Afinal não existe felicidade por completo. Sendo assim, Shena optou pela sua vida de aparência.

E quando a angústia surgia, ela sabia muito bem engolir o choro para não desmoronar na frente do filho. Haveria outro momento para o pranto, como a hora do banho, por exemplo. A água que jorrava do chuveiro levava para o ralo as lágrimas de infelicidade. Shena também estava acostumada a isso.

Nota: Caso é verídico, nome fictício. Esta narrativa não tem intenção de levantar bandeiras. Mas pode ser uma homenagem a tantas pessoas (homens ou mulheres) que se sentem acuadas para se libertarem de algum tipo de opressão e reescreverem suas histórias.