‘Dá um abraço papai’

Um homem de estatura média, cabelos ondulados e castanhos, vestindo uniforme de uma prestadora de serviços, aguarda na calçada. Nem magro nem gordo. Midsize, recorrendo ao termo que está na moda para definir uma pessoa tamanho médio.  Aparenta uns 38 anos.

Um carro cinza se aproxima e estaciona em frente ao homem. Uma mulher esbelta, o que não quer dizer elegante, abre a porta, ao mesmo tempo em que mantém uma das mãos no volante, coloca o rosto e uma das pernas fora do veículo, e dá uma baforada de cigarro. Noto que veste bermudas, regata e uma rasteirinha. Parece mais jovem que ele.

Simpática, diz algo ao homem. Enquanto que ele, aparentando impaciência, caminha até ela, que sai do carro, junto com mais três garotas, que estavam no banco traseiro. Duas têm praticamente o mesmo tamanho, aparentam uns 10 anos, já a outra, uns cinco anos.

As duas meninas maiores, parecem entender que o homem não está prosa e, apenas, observam-no. Já a garotinha não esconde a alegria de vê-lo e exclama: – Papaaaai!

Mas para o homem é como se a garotinha fosse invisível. Ele passa por ela e pelas outras meninas sem dizer uma palavra e nem manifestar qualquer gesto de carinho.

A mulher, segurando o cigarro em uma das mãos, com a outra afasta uns fios dos cabelos pretos que estão presos em um coque, e fala algo para o homem. Ele, em silêncio, vai até o volante, retira a chave e segue para abrir o porta-malas.

A garotinha vai atrás dele e insiste, agora, já em tom de interrogação: – Papai? Papai? (É como se ela quisesse dizer: – Papai eu estou aqui, não está me vendo?) Mas o homem continua indiferente, com toda sua atenção voltada para o porta-malas do carro.

A pequena, então, suplica: – Papai, vem cá, me dá um abraço! E se lança sobre o homem, envolvendo-o com seus bracinhos, que mal conseguem atingi-lo na altura dos quadris.

Eu que observo tudo a uma certa distância, já com os olhos marejados, penso: agora ele vai abraçá-la com todo afeto. No entanto, aquele homem apenas afaga rapidamente os cabelos da garotinha e a afasta, demonstrando pressa em conferir o porta-malas do carro.

A mulher chama as três meninas, todas entram no carro. Enquanto as garotas se acomodam no banco traseiro, a mulher, agora, senta-se no lado do passageiro. O homem fecha o porta-malas, entra no carro e dá partida. O automóvel se afasta até eu perdê-lo de vista.

Talvez aquele homem tivesse algo importante no porta-malas do carro. Talvez a mulher tivesse chegado atrasada e ele se irritou com a espera demasiada… Talvez ele seja um cara legal mas, naquele momento estava mal-humorado ou preocupado. Talvez, talvez…

Enfim, a única conclusão concreta desse episódio é a atitude inocente e afetuosa da garotinha, que só quer dar um abraço no papai.

Para ela pouco importa os talvezes e, nem mesmo, as certezas do mundo dos adultos, que, amiúde, prendem-se a coisas que lhe roubam a paz e deixam escapar a oportunidade de desfrutar do que realmente vale a pena.

‘Quem tem a alma florida não envenena o jardim de ninguém’

Navegando na web, deparei-me com essa frase: ‘Quem tem a alma florida não envenena o jardim de ninguém.’ Não sei quem é o autor, mas achei interessante e bastante significativa quando nos deparamos com a fofoca.

E não digo aquela fofoca corriqueira de fulano que se separou, tá namorando sicrano, brigou com o vizinho… Digo aquela fofoca carregada de veneno que tem como único objetivo destruir a imagem e a autoestima de uma pessoa. Aquela fofoca que é feita de forma capciosa, ardilosa, para que uma pessoa seja condicionada a julgar e discriminar a outra, sem que a mesma, sequer, tenha conhecimento do porquê de tal julgamento, e sem meios de defesa, seja hostilizada e rejeitada.

Infelizmente, há pessoas que se dedicam a envenenar o jardim dos outros.

E não é uma tarefa fácil de identificar esses tipos, pois nunca se mostram como realmente são, mas camuflam-se em gentilezas e bajulação, seduzindo sua presa de forma a cegá-la e, inclusive, torná-la dependente emocionalmente, e minar suas relações com as pessoas.

E tudo o que essas víboras destilarem, a presa vai absorver como se fosse uma verdade absoluta. Assim, víbora e presa podem viver harmonicamente. Entretanto, se a presa, porventura, tiver um ímpeto de clareza e começar a tirar suas próprias conclusões, então, tornar-se-á a próxima vítima.

Portanto, é melhor se precaver de pessoas que se aproximam com jeito meloso, tecendo elogios, mas usando de inverdades e malícia que podem resultar em injustiças, preconceitos e julgamentos de fatos e pessoas que você nem mesmo se deu a oportunidade de conhecer.

E para ajudar a se precaver desses tipos que lançam veneno no jardim alheio, seguem algumas dicas muito úteis:

  • São pessoas que, geralmente, costumam bajular e tecer elogios
  • São sempre vítimas
  • Querem detalhes da sua vida pessoal
  • Instigam situações de atrito, mas se colocam como apaziguadores
  • Nunca tomam partido
  • Definem-se a si mesmas como pessoas boas e compreensivas
  • Concordam com você até ganharem sua confiança
  • Ficam incomodadas quando você não segue suas regras
  • Quando confrontadas, muitas vezes calam-se, e, apenas, roem as unhas. Mas vão tramar pelas suas costas.

Enfim, tenha cuidado com quem se dedica a apresentar um relatório prévio dos outros, antes mesmo que você os conheça. E lembre-se quem costuma intoxicar o jardim dos outros, no fim das contas acaba lambendo as mãos sujas do próprio veneno.

Foto: Jardim de Luxemburgo, Paris

No trote das meninas

A Vila Garcia é uma localidade de Jacareí (SP) conhecida por ter como a maior parte de seus moradores migrantes de Minas Gerais, que começaram a vir para a cidade nas décadas de 1950, durante a instalação de uma antiga fábrica de celulose, que passou por outras denominações e hoje opera com outro nome. Pois bem, dada a introdução, sigo para a narrativa de um fato bem inusitado que me chamou a atenção enquanto caminhava pela Vila, numa quinta-feira, 8 dezembro de 2022, dois dias antes da partida de Brasil X Croácia.

Havia acabado de sair de um ponto comercial e, como estava a pé, pensei primeiro em pegar um ônibus para me levar até o bairro onde moro, que fica distante 10 quilômetros, mas lembrei de um sobrinho que trabalha próximo à Vila e pedi uma carona. Ele combinou de me pegar por volta das 17h30. Conferi as horas no celular: eram 16h25. Se pegasse o ônibus, chegaria em casa cerca de 25 minutos. Preferi esperar pela carona. Afinal era uma oportunidade de caminhar mais pelas ruas do pequeno vilarejo até a portaria da empresa onde meu sobrinho trabalha.

Calculei o trajeto: levaria menos de 20 minutos de caminhada. Então poderia caminhar tranquilamente. Segui por uma avenida, ladeada por casas de um lado e do outro por um canteiro de árvores que demonstravam, pela sua estrutura, que já estavam ali há muitos anos. No canteiro haviam alguns bancos de concreto, aqueles próprios para praças e jardins, e todos com pessoas sentadas. Achei interessante, porque aquela tarde quente era um convite para se refrescar embaixo de uma boa sombra. Só lamentei porque não encontrei nenhum lugar vago para eu também desfrutar daquele frescor natural.

Segui caminhando pela calçada que margeava o canteiro, e avistei um mercadinho. Lembrei que as bananas da fruteira de casa (a gente gosta muito desta fruta) haviam acabado e decidi ir ao estabelecimento. Quem sabe encontraria bananas ali… Logo na calçada do mercadinho, abaixo de uma grande vidraça, havia algumas frutas expostas, mas nenhuma banana. Decidi entrar.

O local era bem organizado. Três caixas logo na entrada, três corredores com gôndolas e uma rampa que, ao subir, vi que dava acesso ao açougue e mais um andar, com outras opções de produtos. E ali encontrei bananas prata e nanica, bem graúdas. Escolhi uma dúzia de banana prata (embora a venda seja por quilo). R$6,99 o quilo. Nem caro nem barato em comparação com os outros supermercados que frequento.

Para pagar a conta, eu precisei entrar numa pequena fila. Havia duas clientes à minha frente: uma muito jovem, que aparentava uns 15 anos, e uma senhora bastante falante, que já puxou assunto comigo sobre o próximo jogo da seleção. _Quanto será para o Brasil? No outro ganhou de goleada, achei até chato , disse se referindo aos 4X1 contra Sérvia. Eu apenas sorri de forma simpática, mas estava atenta a outros acontecimentos.

Enquanto aguardava na fila, lancei o olhar através da mesma vidraça que observei quando cheguei ali. Mas algo havia mudado na paisagem. Avistei duas cabeças de cavalos. Não dava para ver totalmente os dois animais, apenas as cabeças, na posição em que eu me encontrava. Mas notei que um era menor que o outro. Talvez mãe e filhote, ou pai e filhote…

Enquanto a senhora continuava a falar sem parar, eu pensava comigo: de quem seriam aqueles cavalos? Voltei meu olhar para a moça do caixa, o único que funcionava naquele momento. A jovem estava passando suas compras: três pacotes de pão de forma, cheiro verde, dois vidros de maionese e alguns refrigerantes. A senhora que não parava de tagarelar, percebeu que eu estava observando a compra da garota e gracejou, dirigindo-se à menina: _Vai ter bolo salgado hoje, hein? A jovem cliente também lhe devolveu um sorriso simpático e se concentrou no pagamento de suas compras.

Eu também tinha dúvidas, mas não sobre qual cardápio resultaria aqueles produtos, mas como a menina iria acomodar tudo aquilo na mochila preta de couro sintético, que usava.

Enfim, ela não colocou nada na mochila, mas nas sacolinhas de plástico ofertadas pelo supermercado, e saiu. Eu paguei minhas bananas e saí também. Mas ao pisar na calçada, olhei a menina.

Ela estava sentada no chão, em frente aos cavalos, organizando suas compras na mochila (embora eu continuasse a achar que não seria possível colocar tudo ali). Ao seu lado, estava outra garotinha, de uns 10 anos. Concluí que os cavalos eram o meio de transporte das duas. Segui com minhas bananas por aquelas ruas frescas da Vila.

Após caminhar alguns minutos acessei uma outra avenida que me levaria até o local onde havia combinado para pegar a carona. A avenida fica entre uma pequena planície, acima cortada por uma linha férrea, onde passa trem de carga, e do outro, uma mata ciliar às margens de trecho do Rio Paraíba do Sul.

Passados menos de 10 minutos, após sair do mercadinho, e admirando a vegetação que compõe a mata ciliar, ouço trotes e me viro para olhar. Vejo então as duas garotas cavalgando. Os animais passam de forma elegante por mim, como se estivessem participando de um desfile.

A garota mais jovem, montava o animal pequeno. Já a outra, no cavalo maior, tinha às costas a mochila preta, que parecia volumosa e até pesada, e em sua frente, sobre a cela, levava mais duas sacolas sustentadas por uma das mãos, enquanto na outra conduzia, com habilidade, o cavalo.

Em poucos minutos as perco de vista. Seguem em sentido contrário ao meu. Enquanto busco a saída da Vila sentido à rodovia que liga a região ao Centro, elas cavalgam em direção a uma área rural. A cena bucólica me coloca a par de uma realidade diferente da que estou acostumada a ver, onde as ruas são dominadas por veículos automotores. E admiro as meninas, talvez, porque nunca fui boa para cavalgar, e se eu precisasse fazer compras a cavalo, literalmente, estaria na roça.

O presente de Dona Neusa

Ainda faltavam algumas semanas para o início do ano letivo, mas ela já estava de volta de uma viagem. Os amigos da rua, animados com o seu retorno, já haviam programado muitas brincadeiras. Era preciso aproveitar ao máximo o restante das férias. Logo começariam as aulas.

Mas antes que se juntasse à turminha para decidir qual seria brincadeira daquele dia, uma colega a chamou de lado e disse: – A professora dona Neusa procurou por você. Ela queria lhe dar um presente. 

Os olhos se encheram de curiosidade e o interesse pela brincadeira desapareceu por momentos.

– Presente? Você viu o que era? – Questionou, enquanto imaginava mil opções de brinquedos.

– Parece um livro, mas ela lhe entregará quando começarem as aulas – respondeu a garota.

– Livro! Exclamou, sem esconder a decepção, e retornou à brincadeira.

De volta para casa, a notícia que a professora havia lhe comprado um presente, continuou a povoar sua mente. – Mas seria mesmo um livro? Tomara que não, – refletiu. E a curiosidade em descobrir o que seria o tal presente durou até o fim das férias.

O primeiro dia de aula chegou carregado de expectativas, não pelo reencontro com os colegas, mas também porque poderia finalmente receber o presente.

Assim que o portão da escola se abriu, uma pequena multidão de crianças, em meio a pais e professores, seguiu para o pátio. Enquanto a diretora organizava as turmas para cada classe, no meio de toda aquela celeuma, alguém grita seu nome. A aluna avista Dona Neusa com o braço levantado, acenando com um presente, enquanto nas outras mãos carregava sua pasta e materiais escolares. E no meio de toda aquela gente, aluna e professora caminham com dificuldade para, em poucos minutos, encontrarem-se. Ela recebeu o esperado presente, acompanhado de um abraço caloroso. Despediram-se. Dona Neusa não daria mais aula naquela escola.

Era um belo embrulho. Mas a menina preferiu não conferir naquele momento. Sim, ela só iria desembrulhar tudo quando estivesse em casa.

A caminhada de 15 minutos que fazia até a sua casa era sempre na companhia dos colegas. Mas naquele dia saiu rápida, ansiosa para chegar à casa e abrir o presente. E assim o fez.

Ao entrar, cumprimentou a mãe e a chamou para ver a novidade. O presente era de fato um livro. A mãe gostou e a garota também. Foram almoçar, mas a criança mal mexeu na comida. Ainda vestindo o uniforme, entrou no quarto, jogou-se na cama e se debruçou sobre o livro. Contemplou a capa amarela com letras grandes e pretas, onde se lia: “As mais belas histórias”.

Pela primeira vez, a menina devorava as páginas de um livro.

Aluna e professora não se encontrariam mais. No entanto, a menina nunca mais perdeu o hábito de procurar uma brecha para a leitura. E foram incontáveis livros que ela, enquanto menina e depois já adulta, devorou no silêncio do seu quarto e em tantos outros lugares.

Quero fazer xixi!

Naquela sala de espera, a garotinha de corpo esguio e com roupas coloridas, destoava dos outros pacientes que aguardavam ser chamados para a realização de exame. Ela tinha cabelos curtos, mas trazia um tererê com fita azul. Também usava óculos de grau.

Enquanto a mãe dela permanecia sentada em uma das cadeiras, a menina estava lá, grudada na vidraça, de frente para a rua. E por muitos minutos permaneceu ali conversando e cantando. E seu corpinho delicado se movimentava, conforme o diálogo que ela desenvolvia com tanta interação no seu mundo mágico. Impressionante era a forma como ela contorcia os pés, enquanto girava de um lado por outro. A danadinha parecia de borracha.

Para muitos pacientes podia ser só uma criança falando sozinha. Mas a garotinha não estava se importando com isso. Até porque o mundo adulto é muito complexo e um tanto preocupante. O que podia ser refletido nos semblantes sérios dos adultos que ali estavam, diferentes da menina, que cantarolava e dançava naquele laboratório.

O motorista, de um dos carros parados em frente à vidraça, deu partida. O barulho a assustou por instantes e ela silenciou, enquanto observava até o carro sair. Na sequência retomou seu diálogo com os personagens de seu mundo imaginário.

A mãe a interrompera vez e outra para que ela pudesse tomar mais água. Incomodada questionou: – Água de novo?!

A pequenina ia fazer uma ultrassonografia. Curiosa, perguntei à mãe  a idade da menina e o motivo do exame. A explicação foi que a menina nasceu com dilatação em um dos rins e por isso precisava fazer um acompanhamento periódico.  

Por fim, depois de tanta água, o resultado não podia ser outro:

– Mãe, eu quero fazer xixi!

– Mas não pode… Você vai ter que aguentar, respondeu a mãe. E como forma de aliviar a aflição da filha, a mulher a pegou no colo e ambas ficaram ali aguardando serem chamadas.

E eu fiquei na torcida para que o exame da garotinha tenha um ótimo resultado.

A menina da casa sem telhado

Aquela imagem vai ficar para sempre na memória. Era pouco mais de meio dia do domingo, o almoço ainda estava sendo preparado, quando um vento forte destelhou toda a casa e a chuva se derramou sobre cada cômodo. A mãe e as crianças, muito assustadas, correram para o banheiro, único lugar que permaneceu coberto.  Ali, todos ficaram paralisados, aguardando o temporal passar, para sair em busca de outro abrigo. Quando a tempestade se acalmou, saíram pela rua e se depararam com outras famílias, que também estavam desabrigadas.

A ajuda veio e as famílias foram temporariamente alojadas. Mas no dia seguinte a menina e sua família voltaram ao endereço. E ela entendeu que a sua casa já não podia mais abrigá-la. Dormir olhando as estrelas podia até ser uma grande aventura, mas só nos contos de fadas. Porque quando se trata de uma situação real, dormir numa casa sem teto é assustador, ainda mais quando não se sabe por quanto tempo as paredes vão se sustentar. E que a tempestade pode voltar a qualquer momento.

Enquanto os funcionários de uma empresa pública ajudavam na retirada dos pertences que restavam, a menina permanecia ali sentada na calçada, observando a entrada e saída daquelas pessoas entranhas. Na sua inocência, ela até achava novidade aquela movimentação. Vez ou outra fazia algumas perguntas, que eram ignoradas pelos adultos naquele vai e vem nervoso.  Ela queria saber para onde iam levar as coisas da sua mãe? Mas ninguém tinha tempo para responder a uma criança. Aquela gente grande estava muito ocupada.

A menina não tinha muito que fazer. Continuou sentada na calçada, lançando suas perguntas sem respostas, enquanto seus olhos observavam aquela gente grande e estranha carregando seus pertences e colocando num caminhão. A única coisa que sabia, mesmo que inconscientemente, é que, violentamente, sua vida mudou.

A tempestade havia passado. E a previsão indicava mais chuvas fortes nos próximos dias. Mas ela não entendia muito de previsões do tempo. Tinha só sete anos. Apenas sabia que naquele momento não tinha mais a casa que dividia com a mãe e os três irmãos. Agora o caminhão partia, sacolejando a precária mudança, e a menina e sua família seguiam juntos. E ela nem sabia para onde iam.

Eu e o poeta no 31 de outubro

Quero compartilhar uma coisa com vocês. Enquanto muitos se apegam a uma tradição que pouco tem a ver como nossas raízes culturais, eu me pego sempre a ter orgulho do 31 de Outubro, porque, assim como eu, o grande poeta Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987) também nasceu nesse dia.
Já na infância, aprendi com ele o gosto pela poesia e crônica de cada dia.
Mas só na adolescência, que associei seu aniversário ao meu. E o 31 de Outubro, então, passou a ser um dia muito especial, para ser lembrado com muita arte e poesia.
E para celebrar, posto aqui este lindo poema do Drummond.

O tempo passa? Não passa

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade

Castelos

Castelos de pedra ou de areia?

Vai depender das praias por onde caminhares. Às vezes terás de juntar grãos de areia, outras, terás de colocar pedra sobre pedra.

Foi numa tarde de primavera, enquanto assistia ao por do sol naquela praia repleta de pedras em Le Havre, veio à minha memória o litoral brasileiro, nas praias de extensas faixas de areia… Nunca havia pisado de fato em uma praia de pedras. As imagens, que havia visto, foram somente em filmes ou em fotos.

Mas eu estava ali. O mar, com o vai e vem das ondas, trazia a mesmo mistério que traz em qualquer outro lugar do mundo. E a praia, coberta por uma imensidão de pedras, acolhia algumas pessoas, que assim como eu, aproveitavam para deixar o silêncio captar toda poesia daquela despedida do sol, que aos poucos ia desaparecendo no horizonte, enquanto seus raios refletiam como estrelas prateadas sobre as ondas.

A senhora do fogão à lenha

Agosto é o mês do folclore. E lá vem mais um texto inspirado nos “causos” da minha mãe. (A primeira publicação foi o “Anão e a Mexerica”).

Não sei se alguém já ouviu, mas a história que vou contar é da “Senhora do fogão à Lenha”.

Cresci sabendo que minha mãe não tolerava palavrões. E até hoje ela tem essa opinião. “É muito feio ficar falando palavrões. Além de ser falta de educação, atrai coisas ruins. E coisa ruim não é bom a gente brincar.

E na algazarra do dia a dia, vez ou outra saía uma treta entre os irmãos e também escapava uns palavrões. O problema era quando ela ouvia. – “Ah é, falando palavrão? Depois não quero ver ninguém chorando quando a senhora aparecer durante a noite!”.

Pronto! Bastava este comentário para a gente ficar com a consciência pesada e ainda se borrando de medo de receber a visita da tal “senhora”. E logo vinha à imaginação a tal senhora punidora de crianças que falam palavrões. Sentada em um fogão à lenha, enquanto os caldeirões ferviam sob as chamas do fogaréu, a senhora não dizia nada, mas o seus olhos eram apavorantes. Não porque soltavam fogos, mas porque sabiam muito bem o quanto tínhamos sido desobedientes naquele dia. E só de pensar nisso era o suficiente para não querer, de forma alguma, cruzar com aqueles olhos inquisidores.

E quantas noites fui para a cama pensando na tal senhora, com sua roupa acinzentada, seu capuz sinistro e aquele inseparável cachimbo. E você pode até se perguntar: – A senhora era uma bruxa má, então?

Sim, com a imaginação fértil de uma criança, a tal senhora ganhava uma proporção tão temível, que chamá-la de bruxa, seria até um elogio.

Bom mesmo era quando a gente fechava os olhos e, depois de um dia cheio de estripulias, pegava no sono pesado que nem mesmo o pior pesadelo acordava. Caso contrário, mesmo depois de muito rezar, dormir com todas as luzes da casa acesas era pouco para espantar o medo de ter um encontro indesejado com a tal senhora sentada perto do fogão à lenha, pronta para assustar qualquer criança que por ventura acordasse em meio à escuridão.

Agora não me perguntem o “por quê” do fogão à lenha, se a gente estava no quarto de dormir? Oras, porque quando se trata de imaginação tudo é possível! Então se a senhora aparecesse sozinha não teria graça. E minha mãe, boa que era nessa coisa de inventar histórias, incluiu o fogão à lenha no cenário talvez por inspiração na história de “João e Maria”. Talvez porque fogão à lenha era um lugar muito familiar para todos, principalmente nas noites frias, quando muitos ficavam próximos por causa do calor que vinham das brasas estalando enquanto mantinham a comida aquecida.

E o ‘causo’ da senhora até que surgiu efeito. Eu raramente solto um palavrão. Salvo alguns momentos de distração em que o dedinho do pé acaba colidindo com alguma coisa que encontra pelo caminho.

Salve o Dia do Folclore! Salvem os causos e lendas que povoam o imaginário popular!